terça-feira, 30 de setembro de 2014

skate

Hoje resolvi usar um brinquedo que comprei quando fui para os Estados Unidos. Meu mini skate com rodas de gel grandes, para usar na rua. Para os que não me conhecem, eu, no auge dos 15, 16 anos, andava de skate. Não esses longs que estão na moda, aquele skate de manobra. Eu, todos meus irmãos, todos meus primos, todos meus amigos. Era um negócio de outro planeta. Claro que ninguém era bom o suficiente para seguir carreira com isso, mas eu gostava da parada.
            Com o tempo, cada um foi deixando seu skate na prateleira e até hoje tropeçamos em peças de skates velhos nos porões da vida. Rodas aqui, rolamentos pra lá. Um truck que virou cabide. Um shape que virou quadro. Skate fez parte da nossa infância.
            Em terras do bom e velho Sr. Walt Disney, me deparei com um skate mini, com rodas de gel grandes, para usar na rua. Cocei a cabeça, a namorada olhou para o outro lado, e joguei pra dentro do carrinho sem avisar ninguém. Fez boa viagem? Foi ótimo! Nem na alfândega me pararam.
            O problema é que o mini skate ficou com a mesma importância valiosa que os outros: de enfeite. Por diversos motivos, claro, mas principalmente porque o skate não é mais uma prioridade como era antes: acordava as 6 da manhã espontaneamente e ia acordar os vizinhos e família com o barulho do skate. Hoje, já tenho mil coisas pra fazer, e andar de skate é um dos entretenimentos que posso curtir quando tem tempo. Mas ele tá um pouco pra baixo demais na lista para de fato acontecer.
            Mas hoje sobrou tempo. Estudei, li, escrevi, toquei música, brinquei de DJ, tomei sol, brinquei com o Jack, comi uma mexerica. Lá pelas tantas, ainda tinha tempo. E eu precisava comprar um tênis novo no shopping: longe demais para ir a pé, perto demais para ir de carro. E a bike tá sem cadeado. Pronto, brilhou o skate! Tomou vida, saiu do enfeite e veio para meus pés. Como a bicicleta, uma vez de pé no skate, nunca mais desaprendemos.
            O caminho de ida foi turbulento. Se a cidade já é uma grande m*&^a para andar de bicicleta com aquelas rodas gigantes de mountain bike, o que seria do meu pobre skate com rodas de gel? Foi difícil, mas curti, cheguei, comprei e saí logo de lá. (Confesso que deu vontade de dar uma volta de skate no chão do shopping de tão liso que é).
            Mas a crônica só veio por um motivo. A volta. Entre ruas e pedras e quase tombos, o farol dos carros apagou e vi a rua inteira livre. Fui no pau! Rápido e veloz. E quando vejo, 5 sujeitos vindo na direção contrária de skate também! Minha gangue! Meus parças! Um por todos! Todos pelo skate! A liberdade zunia nos meus ouvidos vendo todos chegarem. O primeiro passou por mim, com vergonha, mas depois do terceiro, rolou um: E ae mano do skate! Opa opa opa! Aee porra! No último, não resisti. Mandei um high-five e continuamos viagem, cada um pro seu lado. Sensacional.

            E ai cheguei em casa e olhei no espelho. Um homem de 48 anos. Que comprou um skate há 24 anos e voltou a usar agora. A vida passa. A namorada é esposa. E aquela gangue tem idade para ser meus filhos. Passou rápido, mas veio como um turbilhão. Com direito à high-five e liberdade infinita.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

academia

Tudo posso naquele que me fortalece. Sempre achei essa frase meio errada, meio falsa. Odiava academia. Odeio academia. Odiarei academia. E se houve outro tempo que não esses, estaria conjugando o verbo nele também.
Alguns motivos me levaram a esta conclusão. Nunca foi precipitado, portanto tive que experimentar deste local em que o trabalho escravo é feito por nenhuma remuneração clara (não que algum trabalho escravo seja remunerado, uso apenas como força de expressão). Um dos presentes do meu pai para os filhos que iam bem na escola era matricular na academia nas férias. Não sei da onde que aceitei esse convite: preferia minha parte em dinheiro, ingressos de cinema, fichas no Hot Zone do shopping Morumbi. Mas não, achei que ia ser legal, ainda mais porque fui o único filho que ganhou o presente na íntegra: férias inteiras. Os outros pegaram alguma recuperação e não receberam o “biskrok” paternal.
Entrei na academia e morria de vergonha de falar com as pessoas ou com os instrutores. O cara me fez um plano de exercícios que era para durar uma semana: de 7 em 7 dias vamos alterando. Morria de vergonha e remei no mesmo navio pelos 2 meses de férias.
O problema da vergonha não era social: me dava bem com qualquer sujeito, nunca tive problemas. Mas na academia, quando todos estão numa lavoura competitiva, tudo é diferente. Lembro claramente eu puxando em cada mão um peso de 5. Não sei se eram Kg, ou Libras, ou gramas. Mas era o número 5. Me olhava no espelho em busca de uma justificativa para estar lá. E foi quando descobri uma senhora com 6 vezes mais minha idade carregando 20 em cada braço. A vergonha era imensa, queria entrar em qualquer lugar e me esconder, mas tudo em academias são espelhos e não ia dar certo. Me enganei culpando a “experiência”.

Foi quando tive a brilhante ideia: sou jovem, sou magro, demoro para cansar. A academia tinha uma pista de corrida externa, acima do navio negreiro. Subi e resolvi correr. A pista era pequena e era impossível alguém mensurar quanto você já tinha corrido. Então ficava lá correndo, sem parar, passando pelos mesmos pontos toda vez. E ficava suado, e cansado, mas as pessoas me olhavam com orgulho e eu entendi que lá a vergonha não existia, lá era onde ficavam os portugueses, que fazem menos do que aparentam fazer. Larguei os remos e fui curtir minhas férias de adolescente no antigo continente, longe dos sofrimentos da escravidão.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

sonhos gravados

Não faz muito tempo, mas li que Fellini costumava acordar e desenhar as figuras pitorescas que havia sonhado. Esse turbilhão de desenhos o levou a imaginar uma história bizarra, mas tão interessante que não pode ficar fora da filmografia de ninguém: “Amarcord”.
            E resolvi, com todo meu sobrenome italiano, proceder de maneira semelhante. Claro que não consigo desenhar nem um homem-palito de pé, muito menos acordar e pegar minha pena e redigir a “Ilíada”. Mas somos homens modernos, do novo milênio, e temos conosco a grande parceira: a tecnologia. 
            Como bom narigudo, decidi gravar meus sonhos no celular. Ideia infalível! Quem mais rápido que minha boca e um gravador para deixar esclarecido o que aconteceu naquela névoa de acontecimentos da noite?
            É um procedimento que exige muito de nós: ligar um celular de manhã é como acender um holofote na sua cara. Nesse lusco-fusco, encontrar o aplicativo é como atravessar um “slack-line” de costas. Mas a prática ajuda os esforçados, como sempre foi. Depois de clicar o botão vermelho e gravar sua voz, fica a parte mais difícil: nomear “Sonho nXX”.
            Tomei uma decisão de evitar escutar meus sonhos até ter atingido um bom número deles. Queria deixar fluir meus pensamentos, para poder, quem sabe, criar algo a partir dessas maravilhosas ideias que brotam na cabeça dos italianos enquanto dormem.
             Mas claro que nem toda grande ideia se transforma num grande projeto de vida. Chegou o tão esperado dia (que foi um dia qualquer que não cabia mais nada no meu celular e tive que apagar algumas coisas). Fui escutar: “Sonho 1”. Primeiro, claro, você se assusta com sua voz: parece o Darth Vader fanho. Segundo, você se assusta e acha que morreu com as longas pausas que dá entre um assunto e outro. Terceiro, você mal entende o que você tá falando. Quarto, geralmente acaba com um: “acho que é isso, não me lembro direito”.

            Percebi que não iria conseguir fazer nada artístico com aqueles quase 50 sonhos gravados no celular. O projeto foi todo por agua abaixo, naquelas falas tão nebulosas quanto o sonho em si. Mas uma coisa é fato: escutei novamente o sonho 24. E, enquanto me escutava, vivi todo meu sonho acordado, tempos depois. Foi sensacional e esquisito. Fica a sugestão.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

rotina matinal

            Beh! Beh! Beh! Beh!
            Já tocou!? Não dormi nem quatro horas, não é possível. Snooze.
            Beh! Beh! Beh! Beh!
            Mas vai pro Inferno! Onde eu controlo o snooze? 5 segundos não é suficiente. Sou dono das minhas ações, não é a porcaria do meu celular que vai me acordar. Snooze.
            Oi, tudo bom? Eu sou um dragão. Guardo ouro na minha casa. Voar é bom. Nossa, que delícia. Fiz isso a vida inteira. Mais fácil voar do que andar.
            Beh! Beh! Beh! Beh!
            Que saco. Os criadores do celular não sabem quanto eles atrapalham nossos melhores sonos. Melhor abrir o olho e ver o que está acontecendo.
            AUCH! Ok, ok, um olho só, afinal de contas, estou meio dormindo, meio acordado. Vou meio olhar o Instagram por meio tempo e meio achar tudo meio ruim. Não vou dar meio like, são 6 da manhã. Vão achar que sou um nojento tarado.
            Olha essa foto com comida. Parece uma delícia esse bolo de chocolate. Sem palavras pra essa cobertura de Nutella. Com gostinho de morango? Ah, isso não pode! Que delícia! Assim eu posso, sei lá... voar! Como é gostoso voar. Paz, tranquilidade, liberdade! Olha, dá pra ver minha casa lá embaixo! Seria tão melhor....
            Beh! Beh! Beh! Beh!
            Uow! Esqueci de desligar essa parada? Ah, não, é o segundo despertador. Só coloco de segunda-feira. Que bom que dormi, o gosto do bolo era mil vezes melhor que a foto do Instagram.
            Mantendo o ritual: Whatsapp. Quem me perturbou durante a noite? Caraca, 182 novas mensagens? Vocês dormem menos que eu? Não, provavelmente podem acordar mais tarde, seus filhos da mãe. Vou responder todas, agora! E vou responder picado. Opa galera! Send. Firmeza? Send. Porra, vocês são f*%@s! Send. Hahaha! Send. Fechado hoje a noite. Send. Vlw flws. Send.
            A vingança é um prato que se come frio, tipo sorvete, tipo açaí, tipo sanduíche, tipo caipirinha, tipo cerveja gelada. O melhor de todos.
            Beh! Beh! Beh! Beh!
            Já acordei, mano! Tá bom, abrir o outro olho. AUCH! Ainda vão criar um jeito mais fácil de abrir os olhos. Ou a gente vai parar de checar o celular assim que acordar. Mas e-mail é importante.
            Saco. Quero só ver o Gmail, não o e-mail do trabalho. 53 novos e-mails. Menos spam e inutilidades = 32. Deixando o trabalho para mais tarde = 12. Tirando contas e e-mails que não queria, mas não posso ignorar = 1. Ah, esse último é inútil também = 0. Pronto. Fácil, simples. Que fome. Nossa Senhora do Céu, que vontade de leite com Nescau.
            Melhor levantar. Não, melhor abrir o UOL, checar se o mundo ainda existe. Vai que só sobrou minha casa? Ou um apocalipse zumbi? Ok, mil notícias idiotas que só provam que o mundo continua igual, sem aliens. Estou a salvo para sair da cama. Não está tão frio. 3, 2, 1! Vamos!
            Onde foi parar o chão?!?! Meu Deus! Estou caindo! A cama estava no topo de um prédio! Vento na cara! O chão está chegando perto! Estou voando! Vou morrer! Ahhhh!

            Beh! Beh! Beh! Beh!

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

circuncisão

A primeira vez que eu ouvi falar dessa coisa ai, eu já era um ser grande, alto, homem. Nem sequer me ligava que alguém poderia ser capaz de tal atrocidade. Foi uma amiga, judia. Falou com a maior naturalidade do mundo e eu indaguei. Que parada é essa ai? Ela riu, zuou da minha ignorância, e explicou. Fiquei assustado. Mesmo. Quem seria capaz de fazer algo desses com uma criança?! Com algumas gotas de vinho! Eu bebia uns três copos e ficaria maluco se me dessem um tapa na cara, imagina cortarem a tampa do meu p....? (E quando ela explicou, foi isso mesmo que entendi: cortar a cabeça fora – na época, ainda em aflição com o assunto “tamanho é documento”, decidi que jamais faria isso – e nunca fiz – e que eu sempre teria mais chances que os judeus, já que por alguma barbárie, tiravam uns 2, 3 centímetros de pênis).
            O tempo passou e resolvi guardar esse assunto na pasta “Lixo” do meu cérebro. Foi uma sábia decisão excluir esse tópico masoquista. Mas aí o maldito tema voltou: outra amiga judia (elas pareciam insistir. Algum tipo de conversão religiosa forçada?). Ela me falou que hoje em dia é tudo diferente: tem cirurgia, clean, rápido, rabino vai lá, dá adeus para a pele, não para a cabeça (o que me aliviou, mas colocou novamente os judeus no mesmo patamar de “tamanho é documento” – a competição aumentou). Confesso que fiquei mais aliviado e até cogitei, quem sabe um dia, cuidar melhor do meu parceiro e tirar o “gorro-de-malandro-que-encapuza-a-cabeça”.  Claro que essa conversa teve efeitos biológicos em mim e no mundo: os banhos agora demoravam mais, já que entre todas as etapas – sabonete, shampoo, condicionar e uma eventual barba a fazer – eu colocava o gorro de molho para lavar.
            E esqueci novamente o assunto. Passei a lavar apenas uma vez por banho, inconscientemente, como todos os banhos são, e segui rumo da vida. E final de semana passado o maldito assunto reapareceu. Desta vez minhas amigas judias estão perdoadas: foi um amigo não-judeu. Mas dessa vez eu nem assustei – eu entrei em pânico. O cara foi anestesiado, tiraram a malha de inverno da cabeça dele, e vários pontos da cirurgia, vários, remendando tudo. E ficaram 15 dias por lá, te atormentando a cada segundo. Ele evitava beber qualquer líquido, para evitar fazer xixi. Mas o pior: a ereção causava uma dor absurda, daquelas que os religiosos fervorosos se orgulhariam e diriam “Viu? Fazer isso é errado!”. Quando ele contou que acordava com dores agoniantes depois de uma ereção noturna, eu decidi que já tinha escutado de tudo sobre o assunto e que tudo bem, ser católico não era tão ruim assim.

            Fico pensando se virá mais alguma alma, bondosa ou nem tanto, e me contará uma quarta história sobre o tema que me faça ter algum tipo de reação. Enquanto isso, cultivarei para sempre meu gorro-de-malandro.